Bisão na Caverna de Altamira – Foto: Rameessos via Wikimedia Commons / CC BY-SA 3.0
Arte rupestre pode ajudar a entender como linguagem humana evoluiu
Estudo com participação da USP sugere que as pinturas rupestres representam uma modalidade de expressão linguística
Compreender como os primeiros humanos desenvolveram as capacidades de expressão que desembocaram na linguagem que nos diferencia das outras espécies foi tema de artigo publicado no periódico Frontiers in Psychology, em fevereiro deste ano. Liderado pelo pesquisador Shigeru Miyagawa, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (sigla em inglês MIT), nos EUA, com participação dos linguistas Cora Lesure (MIT) e Vitor Augusto Nóbrega, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o estudo sugere que as pinturas rupestres representam em si mesmas uma modalidade de expressão linguística.
A chamada arte rupestre é um dos termos dados às mais antigas representações artísticas conhecidas, as mais antigas datadas do período Paleolítico Superior (40.000 a.C.) gravadas em abrigos ou cavernas, em suas paredes e tetos rochosos. De acordo com os cientistas, o segredo para entender o salto dado pelos homens rumo à linguagem pode ter começado no interior desses pequenos espaços.
“Nós abordamos o tema da arte das cavernas e das arqueoacústicas, particularmente a descoberta de que essa arte é muitas vezes intimamente conectada às propriedades acústicas das câmaras das cavernas nas quais é encontrada”, explicam os pesquisadores na introdução de seu artigo. Para eles, os primeiros humanos modernos conseguiram detectar a forma como o som reverberava nessas câmaras e pintaram obras de arte em superfícies que eram “pontos quentes” acústicos, isto é, adequados para gerar ecos.
A partir daí, os linguistas argumentam que a arte das cavernas seja “uma forma de transferência de informações de modalidade cruzada, em que os sinais acústicos são transformados em representações visuais simbólicas”. Ou seja, um primeiro indicativo de como a mente simbólica desses primeiros humanos modernos tomou forma em linguagem concreta e externalizada.
Para além do mito e da caverna
Linguista formado na USP, Nóbrega começou sua carreira acadêmica estudando como foram formadas palavras compostas como “limpa-vidros”, “peixe-espada”, etc., em diversas línguas, e quais eram as características mínimas necessárias para a formação delas em qualquer idioma. No doutorado, seu foco passou a ser como os seres humanos puderam ampliar consideravelmente seu vocabulário, um campo conhecido como biolinguística. O contato com o professor Miyagawa começou a partir deste trabalho.
Ao tentar compreender como desenvolvemos o que chamou de competência lexical – o conhecimento e capacidade de utilizar o vocabulário para formar sentenças em um idioma -, o linguista mergulhou mais fundo nas origens da linguagem na tentativa de desvendar como ela se desenvolveu no contexto da evolução, um mistério ainda não solucionado pela ciência e que intriga pesquisadores no mundo inteiro.
“Há razões para se admitir que as bases cognitivas para o desenvolvimento de uma consciência simbólica estavam disponíveis desde o surgimento do Homo sapiens, há cerca de 200 mil anos atrás”, afirma ele ao reiterar que descobertas recentes indicam que os neandertais – uma espécie humana extinta – também eram dotados de consciência simbólica.
Arqueoacústica
“Partimos de uma hipótese definida em diversos trabalhos de arqueoacústica, que sugerem que a localização e o conteúdo das pinturas rupestres estão intimamente associados às propriedades acústicas do ambiente em que foram representadas”, explica, exemplificando que animais de casco, tais como touros ou bisões, normalmente aparecem representados em ambientes cujas reverberações acústicas se assemelham a uma batida de cascos. Não por acaso, existem paredes nas cavernas que seriam perfeitamente adequadas para pintura, mas que foram ignoradas devido às propriedades acústicas do ambiente em que estão localizadas. Em linhas gerais, os primeiros humanos pintavam não só o que viam, mas o que ouviam.
“A arqueoacústica não é a única hipótese e nem toda pintura apresenta propriedades acústicas como essa. Mas há uma relação entre local e conteúdo com estatísticas significativas”, argumenta Vitor ao reforçar que a pesquisa sugere que os artistas rupestres já faziam uso de um raciocínio que “partia de uma consciência simbólica”.
“Com base nessa correlação, sugerimos que os mecanismos que parecem levar essas representações rupestres são um paralelo que nos permitiu desenvolver a linguagem humana, através de fala e sinais”, sumariza ele.
Uma mesma ideia entre diferentes espécies
Coincidentemente, no mesmo mês em que seu artigo foi divulgado, dois outros estudos causaram impacto na comunidade científica já que conseguiram provar que pinturas rupestres podem ser mais antigas do que se supunha, datando de cerca de 60 mil anos atrás, quando Homo sapiens ainda não existiam na Europa. Ou seja, neandertais podem ter sido os primeiros artistas. Com essas novas informações, os cientistas agora precisam pensar como essa competência apareceu ao mesmo tempo em duas espécies diferentes.
Ainda que a arte rupestre não possa ser entendida como linguagem propriamente dita, Nóbrega afirma que sua confecção pode sugerir “que os mecanismos que subjazem à produção da pintura são paralelos aos da produção da linguagem”. Para isso, é preciso encará-las de um ponto de vista multissensorial, para que se possam formalizar correlações de como essas pinturas representaram um avanço que pode ter promovido a linguagem humana.
Assim como a arqueologia pode ser considerada uma reconstrução – novas evidências são cavadas para se confirmar ou contrariar hipóteses históricas -, “o estudo da formação da linguagem também é uma reconstrução”, defende Nóbrega, ao ressaltar que a linguística é uma área “de extrema interface” na qual deve-se observar com atenção as descobertas sendo feitas na arqueologia, biologia, psicologia, entre diversas outras áreas.
Apesar disso, “infelizmente, nós nunca iremos obter uma evidência direta de como foi a primeira forma de linguagem empregada pela espécie”. No entanto, é possível examinar a relação entre registros arqueológicos, como as pinturas rupestres, e os processos cognitivos necessários para que elas se manifestem. E é a partir dessa investigação “que podemos esclarecer a linha do tempo do desenvolvimento evolutivo humano”, finaliza.
O artigo Cross-Modality Information Transfer: A Hypothesis about the Relationship among Prehistoric Cave Paintings, Symbolic Thinking, and the Emergence of Language pode ser acessado neste link.
Mais informações: email vitor.augusto.nobrega@gmail.com
Fonte:http://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/arte-rupestre-pode-ajudar-a-entender-como-linguagem-humana-evoluiu/
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