Johann Heinrich Pestalozzi nasceu em 1746 em Zurique, na Suíça. Quando era jovem, abandonou os estudos religiosos para se dedicar à agricultura, sendo que não obteve sucesso na sua empreitada. Após esse fracasso, Pestalozzi levou algumas crianças pobres para casa, onde encontraram escola e trabalho. Exerceu grande influência no pensamento educacional e foi um grande adepto da educação pública. Democratizou a educação, proclamando ser o direito absoluto de toda criança ter plenamente desenvolvidos os poderes dados por Deus. O seu entusiasmo obrigou governantes a se interessarem pela educação das crianças das classes desfavorecidas.
Em 1782, no seu primeiro livro, Leonardo e Gertrudes, Pestalozzi anuncia as suas ideias educacionais, mas a obra não foi considerada como um tratado educativo pelas figuras importantes da época. Pestalozzi decide ser mestre-escola, e vai então, na sua escola, procurar aplicar as suas ideias educacionais. Para ele a escola deveria aproximar-se de uma casa bem organizada, pois o lar era a melhor instituição de educação, base para a formação moral, política e religiosa. Na sua escola, mestres e alunos (meninos e adolescentes) permaneciam juntos o dia todo, dormindo em quartos comuns. O educador faleceu em 1827.
Para a mentalidade contemporânea, amor talvez não seja a primeira palavra que venha à cabeça quando se fala em ciência, método ou teoria. Mas o afeto teve papel central na obra de pensadores que lançaram os fundamentos da pedagogia moderna. Nenhum deles deu mais importância ao amor, em particular ao amor materno, do que o suíço Pestalozzi. Antecipando conceções do movimento da Escola Nova, que só surgiria na virada do século 19 para o 20, Pestalozzi afirmava que a função principal do ensino é levar as crianças a desenvolver as suas habilidades naturais e inatas. “Segundo ele, o amor deflagra o processo de autoeducação”, diz a escritora Dora Incontri, uma das poucas estudiosas de Pestalozzi no Brasil.
A escola idealizada por Pestalozzi deveria ser não só uma extensão do lar como inspirar-se no ambiente familiar, para oferecer uma atmosfera de segurança e afeto. Ao contrário de muitos dos seus contemporâneos, o pensador suíço não concordava totalmente com o elogio da razão humana. Para ele, só o amor tinha força salvadora, capaz de levar o homem à plena realização moral – isto é, encontrar conscientemente, dentro de si, a essência divina que lhe dá liberdade. “Pestalozzi chega ao ponto de afirmar que a religiosidade humana nasce da relação afetiva da criança com a mãe, por meio da sensação de providência”, diz Dora Incontri.
Pestalozzi na sua escola
Pestalozzi acreditava na Bondade potencial das crianças. Tanto a defesa de uma volta à natureza quanto a construção de novos conceitos de criança, família e instrução a que Pestalozzi se dedicou devem muito a sua leitura do filósofo franco-suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), nome central do pensamento iluminista e naturalista. Ambos consideravam o ser humano do seu tempo excessivamente cerceado por convenções sociais e influências do meio, distanciado da sua índole original – que seria essencialmente boa para Rousseau e potencialmente fértil, mas egoísta e submissa aos sentidos, para Pestalozzi. “A criança, na conceção de Pestalozzi, era um ser puro, bom na sua essência e possuidor de uma natureza divina que deveria ser cultivada e descoberta para atingir a plenitude”, diz Alessandra Arce, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto. O pensador suíço costumava comparar o ofício do professor ao do jardineiro, que devia providenciar as melhores condições externas para que as plantas seguissem o seu desenvolvimento natural. Ele gostava de lembrar que a semente traz em si o “projeto” da árvore toda. Desse modo, o aprendizado seria, em grande parte, conduzido pelo próprio aluno, com base na experimentação prática e na vivência intelectual, sensorial e emocional do conhecimento. É a idéia do “aprender fazendo”, amplamente incorporada pela maioria das escolas pedagógicas posteriores a Pestalozzi. O método deveria partir do conhecido para o novo e do concreto para o abstrato, com ênfase na ação e na perceção dos objetos, mais do que nas palavras. O que importava não era tanto o conteúdo, mas o desenvolvimento das habilidades e dos valores.
Escola com o seu nome no Brasil
Ao contrário de Rousseau, cuja teoria é idealizada, Pestalozzi, segundo a educadora Dora Incontri, “experimentava a sua teoria e tirava a teoria da prática”, nas várias escolas que criou. Pestalozzi aplicou em classe o seu princípio da educação integral – isto é, não limitada à absorção de informações. Segundo ele, o processo educativo deveria englobar três dimensões humanas, identificadas com a cabeça, a mão e o coração. O objetivo final do aprendizado deveria ser uma formação também tripla: intelectual, física e moral. E o método de estudo deveria reduzir-se aos seus três elementos mais simples: som, forma e número. Só depois da perceção viria a linguagem. Com os instrumentos adquiridos desse modo, o estudante teria condições de encontrar em si mesmo liberdade e autonomia moral. Como alcançar esse objetivo dependia de uma trajetória íntima, Pestalozzi não acreditava em julgamento externo. Por isso, nas suas escolas não havia qualificações ou provas, castigos ou recompensas, numa época em que chicotear os alunos era comum. “A disciplina exterior, na escola de Pestalozzi, era substituída pelo cultivo da disciplina interior, essencial à moral protestante”, diz Alessandra Arce, que é a apresentadora entrevistada no documentário que escolhi para ilustrar este depoimento. E, dado que, o 19 de agosto se celebra o “Dia mundial da Ação Humanitária”, também podemos aproveitar este interessante documentário para comemorar esta data, pois também Pestalozzi está considerado pelos estudiosos da História da Pedagogia como o autêntico “Educador da Humanidade”.
FICHA TÉCNICA DO DOCUMENTÁRIO:
- Título original: Johann Heinrich Pestalozzi.
- Produtora: Atta Mídia e Educação (Brasil, 2011, 41 min., a cores e a preto e branco, documentário).
- Editora: Paulus Editora. Coleção: Grandes Educadores.
- Roteiro e Apresentação: Aleddandra Arce (Mestra em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, pós-doutora em Filosofia e História da Educação pela Unicamp. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de São Carlos e coordenadora do curso de Pedagogia. Considerada como a maior especialista do Brasil sobre Pestalozzi, e também sobre outros grandes educadores do mundo).
- Argumento: A escola idealizada por Pestalozzi deveria ser não só uma extensão do lar como inspirar-se no ambiente familiar, para oferecer uma atmosfera de segurança e afeto. Ao contrário de muitos dos seus contemporâneos, o pensador suíço não concordava totalmente com o elogio da razão humana. Para ele, só o amor tinha força salvadora, capaz de levar o homem à plena realização moral, isto é, encontrar conscientemente, dentro de si, a essência divina que lhe dá liberdade. As ideias e práticas de Johann Heinrich Pestalozzi representam um legado fundamental para a compreensão da pedagogia atual. Neste programa, Alessandra Arce, uma das maiores referências no estudo de Pestalozzi do país, aponta as influências da “Era das Revoluções” sobre os conceitos desse educador e explica a fundamental contribuição contida na sua missão pedagógica.
- Conteúdos do Documentário: Contexto histórico: a “Era das Revoluções”; Biografia de Pestalozzi; A criança; O controlo dos instintos animais; Amor, paciência e trabalho; Desenvolvimento da criança: repetição do desenvolvimento da humanidade; Apreensão pelos sentidos; Retorno à natureza; A criança como centro; O “ABC” da intuição; Número, forma e palavra; Nos passos de Comenius e Ideias-guias.
AS IDEIAS PEDAGÓGICAS PESTALOZZIANAS:
De forma sintética analiso as ideias educativo-didáticas de Pestalozzi. A escola idealizada por Pestalozzi tem as seguintes características básicas:
Estes são os aspetos básicos da organização da sua escola:
- As turmas eram formadas com os menores de oito anos, com os alunos entre oito e onze anos e outra turma com idades de onze a dezoito anos.
- As atividades escolares duravam das 8:00 às 17:00 horas e eram desenvolvidas de modo flexível; os alunos oravam, tomavam banho, faziam o desjejum, faziam as primeiras lições, havendo um curto intervalo entre elas.
- Duas tardes por semana eram livres, e os alunos realizavam excursões.
- Os problemas disciplinares eram discutidos à noite; ele condenava a coerção, as recompensas e punições.
Podemos concluir, por tanto, que Pestalozzi foi um dos pioneiros da educação moderna, influenciando profundamente todas as correntes educacionais, e longe está de deixar de ser uma referência. Fundou escolas, cativava a todos para a causa de uma educação capaz de atingir o povo, num tempo em que o ensino era privilégio exclusivo. Resulta muito esclarecedora do seu pensamento aquela sua frase: “A vida educa. Mas a vida que educa não é uma questão de palavras, e sim, de ação. É atividade”.
TEMAS PARA REFLETIR E REALIZAR:
Depois de ver o documentário, organizar um debate-papo ou tertúlia, sobre os diferentes aspetos que sobre a figura de Pestalozzi aparecem no mesmo. Refletir sobre o seu pensamento educativo e comentar, dando alternativas concretas, sobre como se poderia pôr em prática hoje nas nossas escolas a sua didática prática. Poderia pesquisar-se também na Internet sobre as experiências realizadas por Pestalozzi em Stanz, Neuhof, Burgdorf e Yverdon, assim como sobre as suas interessantes publicações.
Elaborar uma monografia, procurando informações em livros e na internet, sobre Pestalozzi, as suas ideias pedagógicas e os seus métodos didáticos. Com desenhos, textos, cartazes e materiais elaborados, poderia organizar-se nas escolas uma magna exposição sobre as experiências educativas realizadas pelo pedagogo suíço, nas diferentes instituições nas que esteve e dirigiu.
Escolher uma, para lê-la entre todos, das obras básicas, e de maior aplicação à Didática nas aulas, escritas por Pestalozzi, publicadas na nossa língua, como: As Horas Noturnas de um Ermitão, Leonardo e Gertrudes, Como Gertrudes ensina as suas crianças ou O canto do cisne. Podemos optar também por ler algum livro dedicado a estudar a sua pedagogia. Entre eles temos Vida de Pestalozzi, de Agostinho da Silva, Pestalozzi. Educação e ética, de Dora Incontri, Pestalozzi, um romance pedagógico, de Walter Oliveira Alves ou A Pedagogia na “era das Revoluções” – Uma Análise do Pensamento de Pestalozzi e Froebel, de Alessandra Arce. Depois de lida a obra eleita, organizar um “Livro-fórum” para comentá-la e debater sobre as palavras, ideias educativas e propostas práticas que o pedagogo suíço faz na mesma.
Fonte:https://pgl.gal/pestalozzi-o-educador-da-humanidade-documentario-da-serie-grandes-educadores/
Johann Heinrich Pestalozzi, a trajetória e a fundamentação da pedagogia moral (1746/1827)
Anderson Claytom Ferreira Brettas
Instituto Federal do Triângulo Mineiro – IFTM, Brasil
RESUMO
Nascido em Zurique, na Suíça, em 1746, Johann Henrich Pestalozzi é, por excelência, um dos fundadores da educação contemporânea. Leitor de Jean Jacques Rousseau, influenciado pelo naturalismo e pelo romantismo, ativista sintonizado com as lutas políticas de seu tempo, Pestalozzi conjugou como poucos autores a prática pedagógica com a produção e sistematização teórica, com a atuação, tanto na fundação e direção de escolas, quanto na publicação de uma vasta literatura. Entre vários aspectos, ressaltou a questão social e a democratização da escola com a defesa do ensino público, ideias que influenciaram a organização educacional de vários sistemas nacionais de ensino. O presente artigo trata das passagens biográficas mais relevantes e os aspectos conceituais das contribuições de Pestalozzi no campo das reflexões pedagógicas. O presente artigo visa resgatar e apresentar, a partir de análises bibliográficas, a trajetória de J.H.Pestalozzi e os elementos teóricos e conceituais de suas obras que circunstanciam a construção de uma pedagogia com ênfase na formação moral.
PALAVRAS-CHAVE: Johann Heinrich Pestalozzi. Pedagogia moral. Educação contemporânea
JOHANN HEINRICH PESTALOZZI, THE TRAJECTORY AND THE FOUNDATION OF MORAL PEDAGOGY (1746/1827)
ABSTRACT
Born in Zurich, Switzerland, in 1746, Johann Henrich Pestalozzi is, by excellence, one of the founders of contemporary education. Reader Jean Jacques Rousseau, influenced by romanticism and naturalism, activist attuned to the political struggles of his time, Pestalozzi conjugated as few authors the pedagogical practice with the production and theoretical systematization, with the performance in both e foundation, direction of schools, and publication of a great literature. Among several aspects, he stressed the social issue and the democratization of school with the defense of public education, ideas that influenced the educational organization of several national education systems. This article is about the most relevant passages biographical and the conceptual aspects of the contributions of Pestalozzi in the field of pedagogical reflections. The present article aims at retrieving and demonstrating, based on bibliographical analyzes, the trajectory of J.H.Pestalozzi and the theoretical and conceptual elements of his works that circumstantiate the construction of a pedagogy with an emphasis on moral formation.
KEYWORDS: Johann Heinrich Pestalozzi. Moral pedagogy. Contemporary education.
JOHANN HEINRICH PESTALOZZI, LA TRAYECTORIA Y LA FUNDACIÓN DE LA PEDAGOGÍA MORAL (1746/1827)
RESUMEN
Nacido en Zúrich, Suiza, en 1746, Johann Henrich Pestalozzi es, por excelencia, uno de los fundadores de la educación contemporánea. El lector de Jean Jacques Rousseau, influenciado por el naturalismo y el romanticismo, activista sintonizado con las luchas políticas de su tiempo, Pestalozzi conjugó como pocos autores la práctica pedagógica con la producción y sistematización teórica, con la actuación, tanto en la fundación y dirección de escuelas, como en la publicación de una vasta literatura. Entre varios aspectos, resaltó la cuestión social y la democratización de la escuela con la defensa de la enseñanza pública, ideas que influenciaron la organización educativa de varios sistemas nacionales de enseñanza. El presente artículo trata de los pasajes biográficos más relevantes y los aspectos conceptuales de las contribuciones de Pestalozzi en el campo de las reflexiones pedagógicas. El presente artículo tiene por objeto rescatar y presentar, a partir de análisis bibliográficos, la trayectoria de J.H.Pestalozzi y los elementos teóricos y conceptuales de sus obras que circunstancian la construcción de una pedagogía con énfasis en la formación moral.
PALABRAS CLAVE: Johann Heinrich Pestalozzi. Pedagogía moral. Educación contemporánea.
1 INTRODUÇÃO
“Mas onde se deve procurar a liberdade é nos sentimentos. Esses é que são a essência viva da alma.”
Goethe
Três anos depois da promulgação, pela Assembleia Constituinte francesa, da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, redigida a partir das concepções iluministas em sua face mais popular, inspirada nas ideias de Jean-Jacques Rousseau, o suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) recebia, a 26 de agosto de 1792, numa Paris repleta de estampas da nova bandeira tricolor, o título de cidadão francês.
Neste mesmo ano, o deputado filósofo, Marquês de Condorcet, apresentava seu “Plano de Instrução Pública” (2008), buscando estender, a todos os cidadãos, o ensino público e gratuito, assim como um saber técnico necessário à profissionalização. O projeto não foi aprovado, mas, no ano seguinte, num momento da Revolução mais inclinado aos setores populares, Louis Michel Le Pelletier (1760/1793), presidente do Parlamento, elaborou um “Plano Nacional de Educação”, encomendado por Robespierre, líder dos jacobinos.
Eram tempos de ebulição e transformação; se, na época da expansão ultramarítima, a modernidade fincava seus alicerces, o mundo de Pestalozzi assistia à consolidação plena desse projeto.
Em que pese a pouca difusão no Brasil, Pestalozzi é o educador e filósofo da educação mais discutido no mundo. Quando da ocasião do primeiro centenário de sua morte, Édouard Claparède contou pacientemente o número de linhas e páginas dedicadas a catorze pedagogistas modernos, em três enciclopédias pedagógicas (Buisson, Rein e Monroe) e de quatro histórias gerais da pedagogia, editadas entre 1910 e 1920. Nesse estudo de Claparèd, o nome de Pestalozzi era, de longe, o primeiro em citação, o dobro de Rousseau, que o seguia posteriormente (CHÂTEAU, 1978, p. 209-10).
Um dos precursores, também da psicologia moderna, Pestalozzi inspirou importantes pensadores da educação como Fröbel e Herbart. Todas as correntes de reforma educacional do século XIX estão vinculadas, de alguma forma, à sua figura.
O pensamento pestalozziano transita entre os ideais da Ilustração, notadamente no desenvolvimento de uma pedagogia engajada politicamente e os esforços para a laicização do ensino e a educação do século XIX, da sociedade urbana e industrial, com os projetos para a implantação da escola universal, laica e gratuita.
2 O ATIVISMO POLÍTICO E A JORNADA EM STANS
Em 1798 eclodiu a “Revolução Suíça”, movimento inspirado pelos ventos da liberdade propagados pela Revolução Francesa, desencadeado, sobretudo, contra a corrupção das ricas casas reinantes. Concomitante com o movimento francês, ocorreram levantes revolucionários em Lausanne (1790), Genebra (1792), Grisons (1794) e Vaud (1797).
Entre a cobiça geopolítica francesa, com as ambições napoleônicas; as contradições de classes e a fragilidade da descentralização política do território, a Revolução de 1798 proclamou a “República Helvética”, com a união dos diversos Cantões em Argóvia. As leis foram padronizadas, a maior parte segundo o modelo francês - dezenas de moedas foram unificadas no franco suíço e a confederação composta por cidades e vales autônomos foi centralizada em uma República de cidadãos iguais (HISTORY, 2004).
Desde a década de 1760, quando tinha 17 anos, Pestalozzi fazia parte da “Sociedade Helvética” ou “Patriotas”, como também eram conhecidos - movimento intelectual contra o poder aristocrático que clamava por reformas liberais na Suíça.
Com a deflagração da Revolução Suíça, tornou-se, em 1798, redator da “Folha Popular Helvética” (“Helvetisches Volksblatt”), jornal que propunha a disseminação das ideias culturais, educacionais e sociais da nova ordem política implantada.
As lutas pela independência e a presença de tropas francesas intervencionistas de Napoleão Bonaparte na Suíça deixaram muitas crianças que vagavam sem pais, sem casa e sem comida em torno do Lago de Lucerna.
Paralelamente à lide jornalística, Pestalozzi dirigiu em Stans, em 1798, um instituto destinado a esses órfãos de guerra.
O orfanato foi instalado em um convento abandonado e a estrutura para seu funcionamento foi garantida pelo governo suíço. Pestalozzi esboçou a instituição como uma família, com o propósito de educar intelectual e moralmente os rapazes afiliados. Nessa experiência pedagógica, desenvolveu os princípios fundamentais de seu ensino, o “método intuitivo” e o “ensino mútuo” (CAMBI, 1999, p.417). Numa combinação entre as atividades educacionais e o trabalho manual, Pestalozzi, além de professor, posicionava-se ccomo pai das crianças.
Em junho de 1799, porém, o invasor francês solicitou o prédio para a instalação de um hospital. A instituição foi fechada - o que representou uma dura decepção para Pestalozzi. Além das conjunções políticas, com a população dividida diante da intervenção estrangeira - afinal o governo que Pestalozzi representava apoiou a invasão francesa que massacrou uma rebelião local - e as contradições religiosas, com a resistência católica contra uma administração laica e pública do orfanato, foram fatais para seu insucesso (INCONTRI, 1997, p.85-6).
Acolhido por amigos nos Alpes, para recobrar a saúde debilitada pelos desgastes da experiência, escreveu as “Cartas de Stans” 1 (1996), com pensamentos acerca das questões pedagógicas e revelações a respeito dos aspectos de seu cotidiano com as crianças, a cumplicidade, os laços afetivos. Entre relatos contundentes e reflexões comoventes, numa passagem, descreveu2:
Eu ficava desde a manhã até a noite, praticamente sozinho entre eles. (...) Cada socorro, auxílio em cada sofrimento, cada lição que receberam, vinha imediatamente de mim. Minha mão descansou em suas mãos, meus olhos repousaram sobre os seus olhares. Minhas lágrimas escorriam com as deles, e meu sorriso acompanhado do deles. Eles estavam fora do mundo, eles eram de Stans, eles estavam perto de mim e eu estava perto deles. Sua sopa era a minha, a bebida era a minha bebida. Eu não tinha nada, eu não tinha nem família nem amigos, nem empregados em torno de mim, eu tinha eles. Quando eles estavam em boa saúde, eu estava entre eles, quando eles estavam doentes,
1 Texto aqui utilizado: « Lettre de Stans » (1995).
2Tradução nossa a partir da edição francesa: « J'étais, du matin jusqu'au soir, pratiquement seul au milieu d'eux [...]. Chaque aide, chaque secours dans la détresse, chaque leçon qu'ils recevaient, venait immédiatement de moi. Ma main reposait dans leur main, mon regard était posé sur leur regard. Mes larmes coulaient avec les leurs, et mon sourire accompagnait le leur. Ils étaient hors du monde, ils étaient hors de Stans, ils étaient près de moi et j'étais près d'eux. Leur soupe était la mienne, leur boisson était ma boisson. Je n'avais rien, je n'avais ni famille, ni amis, ni domestiques autour de moi, je n'avais qu'eux. Lorsqu'ils étaient en bonne santé, je me tenais debout au milieu d'eux; lorsqu'ils étaient malades, j'étais à leur chevet. Je dormais au milieu d'eux [...]. Quand ils étaient couchés, je priais encore avec eux et je les instruisais jusqu'à ce qu'ils fussent endormis : ils le voulaient ainsi.»
eu estava à beira do leito. Eu dormia no meio deles. (...) Quando eles estavam na cama, eu orava com eles e novamente transmitia ensinamentos até que eles dormissem: e eles me pediam também (1996, p.21-2).
Em outro trecho do documento, reitera suas crenças sociais:3
A completa falta de educação escolar era precisamente o que me inquietava, no mínimo; confiante nas forças da natureza humana que Deus igualmente depositou nas crianças mais pobres e abandonadas, não somente tinha aprendido há muito tempo pela minha experiência anterior que a natureza se desenvolve, no meio do lamaçal da grosseria, da selvageria e da decadência, as disposições e as habilidades mais sublimes, mas eu vi também em meus filhos que a força viva da natureza vem de várias direções no meio de sua rudeza (1996, p.15-6).
A difícil experiência em Stans, no entanto, reforçou e difundiu a imagem de Pestalozzi vinculada à pedagogia do amor, exemplo da abnegação e da entrega, valorizando o papel social da educação. A pintura a seguir, em óleo sobre tela, datada de 1879, é de Konrad Grob (1828/1904), pintor suíço impressionista:
3"L’absence totale d’instruction scolaire était d’ailleurs justement ce qui m’inquiétait le moins; confiant dans les forces de la nature humaine que Dieu a également déposées dans les enfants les plus pauvres et les plus abandonnés, non seulement j’avais appris depuis longtemps par mon expérience antériere que la nature développe, au bear milieu de la fange de la grossièreté, de la sauvagerie et du délabrement, les dispositions et les aptitudes les plus sublimes, mais je voyais également chez mes enfants cette force vivante de la nature surgir de toutes part au beau milieu de leur grossièreté »
3 A EXPERIÊNCIA EM BURGDOF E A DISSEMINAÇÃO DO MÉTODO
Contando com o apoio do ministro Stápfer, um amigo e protetor, Pestalozzi obteve a licença para ensinar nas escolas oficiais em Burgdof, próximo a Berna, em 1800. Recebeu um antigo castelo do povoado e ainda contou com uma gratificação mensal do governo de 160 francos mensais (PESTALOZZI, 2003). Nesse ano, Stápefer e alguns admiradores de Pestalozzi fundaram uma “Sociedade de Amigos da Educação”, que procurou ajudar, de diferentes maneiras, o pedagogo, com o estudo e aplicação de seu método, intervenções junto ao Governo e à sociedade para angariar recursos para a publicação de livros elementares, entre outros apoios.
Em Burgdorf, Pestalozzi recebeu a incumbência da Câmara Municipal para que ensinasse em uma escola infantil onde eram assistidas vinte e cinco crianças. Ali o professor experimentou seu método de instrução elementar.
Com a ajuda financeira recebida do Governo suíço e de seus amigos, consagrou sua dedicação a uma escola normal para a formação de professores - jornada que catapultou a influência de Pestalozzi pela Europa.
Envolvido nesses empreendimentos, Pestalozzi escreveu uma de suas obras primas, lançada em 1801, “Como ensina Gertrudes a seus filhos” (“Wie Gertrud ibre Kinder Lehrt“)4, acentuando suas preocupações com a questão da prática pedagógica e psicologização da educação. A experiência em Burgdorf durou quatro anos, período em que esteve ausente em duas ocasiões: primeiro, por ter sido nomeado deputado da representação suíça em Paris (entre outubro de 1802 e fevereiro de 1803), depois, pela fundação de uma escola em Yverdon. Nesses ínterins, o instituto foi dirigido por professores próximos a Pestalozzi.
Na estada na França, em missão oficial, tentou convencer Napoleão Bonaparte sobre a importância da educação elementar, o que não despertou interesse no então cônsul da França, nem tampouco em seus auxiliares diretos.
Os cinco anos de existência de Burgdorf foram significativos. A instituição foi visitada por personalidades estrangeiras - dentre elas, o filósofo alemão Johann Friedrich Herbart (1776/1841), fundador da pedagogia como disciplina acadêmica. O modelo Burgdorf deu origem a outros similares na Europa.
4Tradução nossa a partir de “Como enseña Gertrudis a sus hijos” (PESTALOZZI, 2004).
Experimentou ainda uma quinta e breve experiência pedagógica em Múnchenbuschee (entre 1804 e 1805), nos moldes de Burgdorf, mas preferiu vender sua parte da instituição a um colaborador: Féllenberg.
A partir dali, seguiu para Yverdon, no Cantão de Vaud, onde instalou, num antigo castelo medieval, um Instituto - sua mais longa experiência, permanecendo ali até 1825.
Foi nessa jornada que Pestalozzi melhor organizou seu método educativo, com projeção internacional, recebendo a visita de importantes personalidades.
Animosidades com alguns professores, dificuldades financeiras, além do peso da idade – completou, em 1816, setenta anos - levaram o Instituto ao declínio, que foi fechado em 1825. O incorrigível professor ainda empenhou recursos da publicação de suas obras para a instalação de um orfanato para crianças pobres; primeiro em Clynd, depois foi trasladado para Yverdon, o que aprofundou suas dificuldades econômicas.
Em 1826, publicou sua autobiografia, o “Canto do Cisne” (2003) e faleceu no ano seguinte, quando vivia em Neuhof.
4 ILUSTRAÇÃO E ROMANTISMO NA PEDAGOGIA DE PESTALOZZI
Johann Heinrich Pestalozzi, embora nascido do século XVIII (1746), foi um pensador que viveu, absorveu e, efetivamente, contribuiu para a construção da pedagogia contemporânea a partir das balizas da sociedade industrial do século XIX.
Teórico liberal e filósofo político, foi um reconhecido democrata, haja vista a homenagem da Assembleia Nacional revolucionária, concedendo-lhe, em 1792 a cidadania francesa e a adesão à República Helvética na Suíça em 1798.
Na esfera pedagógica, Johann Heinrich Pestalozzi foi um dos principais expoentes da pedagogia romântica, revivendo as lutas travadas pelo ensino – os sonhos, os projetos, a militância – e reativando uma noção espiritual da educação, animada pelo “amor”.
Sua principal influência foi o filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau, e conjugou também pressupostos de Immanuel Kant (1724/1804) sobre a educação moral e a questão premente na consolidação da modernidade - a laicização do ensino -, além dos de Johann Bernhard Basedow (1724/1790), pensador social alemão que fundou, em 1774, o “Philanthropinum”, ou "Escola de Filantropia”, educandário progressista que, apesar de um trajeto relativamente curto (durou até 1793), exerceu influência significativa em outras escolas do gênero na Alemanha e em outros países (MANACORDA, 2010, p. 299).
O Romantismo abarcou terrenos distintos como a literatura, a filosofia, a arte, a historiografia, a música, além da pedagogia. O espírito dessa “revolução cultural”, entoado pelas vozes mais contestadoras do Iluminismo, como Rousseau e Kant, e também o ímpeto transformador da Revolução Francesa, articulada à noção de liberdade, consubstanciaram essa tendência contra a razão setecentista e sua centralização no indivíduo. No bojo do sentimentalismo, que por vezes remetia suas raízes à Europa cristã medieval, eram expostas críticas aos aspectos periféricos da modernização (como o tecnicismo, a massificação e a exclusão).
Rousseau foi o grande inspirador dos autores românticos. Efetivamente, foi o único pensador da Ilustração que não focalizou a propriedade privada como direito inalienável, voltou-se contra as injustiças sociais da época e fundamentou a categoria da “vontade geral”, cerne da definição do corpo civil e da constituição da moderna democracia (ROUSSEAU, 2003).
Suíço de origem humilde, Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra em 1712 - um dos quinze filhos de um relojoeiro. O mundo das letras nos tempos do Iluminismo era marcado pela presença de intelectuais oriundos de abastadas famílias burguesas, como Voltaire (1694/1778) dentre outros. Mesmo com condição social inferior, e também avesso às cortes, demarcou um campo mais progressista no projeto político das luzes.
No “Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens”, texto que assinala sua posição, acentuou:
Concebo na espécie humana duas formas de desigualdade: uma a que chamarei natural ou física, porque é estabelecida pela natureza e que consiste na diferença de idade, de saúde, de força corporal e de qualidades do espírito ou da alma; outra que se pode chamar desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e porque é estabelecida, ou pelo menos autorizada, pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos privilégios de que gozam alguns em prejuízo dos outros, como o ser-se mais rico, mais honrado, mais poderoso que os outros, ou mesmo o fazer-se obedecer por eles (1976, p.15).
Sua principal obra na literatura pedagógica foi “Emílio ou Da Educação” (1999), referência nas análises da educação moderna, que conjugada com o romance “Júlia ou Nova Heloísa” (1994), trabalho que teorizou sobre a reforma da família a partir da ênfase no amor e na virtude, e com o clássico “Do Contrato Social” (2003) - os três textos, produzidos num espaço de quinze meses (entre 1761 e 1762) - apresentam a filosofia política e a educacional, em estreita conexão, do pensamento rousseauniano.
Embora muitas vezes analisadas separadamente, com a ênfase em suas ideias políticas e a minimização de sua contribuição no debate educacional, política e pedagogia são complementares: uma é o pressuposto e o complemento da outra.
O aspecto central de “Emílio” é o romanceamento do crescimento de um jovem em que Rousseau constrói a aplicação de uma educação considerada ideal do homem natural – e não o homem cidadão corrompido pela sociedade. Afastado do convívio coletivo e acompanhado de um preceptor ideal, a educação deve ocorrer de modo “natural”, possibilitando um retorno às faculdades originais, afastado da escravidão, livre das convenções sociais e hábitos exteriores. Trata-se, dessa forma, da valorização das necessidades espontâneas da criança e do processo livre de crescimento.
O espírito dessas regras está em conceder às crianças mais liberdade verdadeira e menos voluntariedade, em deixá-las com que façam mais por si mesmas e exijam menos dos outros. Assim, acostumando-se desde cedo a subordinar seus desejos às suas forças, elas sentirão pouco a privação do que não estiver em seu poder (id, op. cit., p.47).
Em aprofundamento às questões do “Contrato Social”, o escopo da proposta social do “Emílio” é a apresentação de uma alternativa para a reforma ética e política da sociedade: “Saindo de minhas mãos, ele não será, concordo, nem magistrado, nem soldado, nem padre; será primeiramente um homem” (Id, p.15).
Rousseau, já no início da obra, estabelece seu desafio intelectual: “(...) Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana”. A pedagogia remete, portanto, à integração do homem à sociedade moral, e os objetivos propostos da educação são inseparáveis dos da filosofia, da política e da religião: “Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos adultos, é nos dado pela educação” (Id, p.9).
O filósofo genebrino operou a chamada “revolução copernicana” na pedagogia – referência ao estudioso polonês Nicolau Copérnico que inverteu o centro do sistema astronômico - ao ressaltar a criança como centro de sua teorização, com suas especificidades essenciais:
[...] a educação começa com a vida. Ao nascer, a criança já é discípulo, não do governante e sim da natureza. Nascemos capazes de aprender, mas não
sabendo nada, não conhecendo nada. A alma, acorrentada a seus órgãos imperfeitos e semiformados, não tem sequer o sentimento da própria existência (id, p.44).
O alcance de “Emílio”, embasado na proposta do modelo da educação libertária e natural, remete para a constituição do cidadão, homem ativo e soberano capaz de almejar a liberdade. Por outro lado, é também súdito, na medida em que se submete às leis que ele mesmo contribuiu para a constituição.
Franco Cambi, historiador italiano da educação, destacou as três contribuições mais decisivas de Rousseau à pedagogia (1999, p.346-7): a descoberta da infância como idade autônoma, dotada de características específicas; o elo entre motivação e aprendizado, colocado no centro da formação intelectual do Emílio, e que exige a premissa de que, no ensino de qualquer noção, é necessária a referência precisa a sua experiência concreta; e a atenção do educador quanto ao equilíbrio entre liberdade e autoridade, no cuidado para que a aprendizagem “natural” não signifique mero espontaneísmo da criança.
A partir do Iluminismo, a consolidação do individualismo da sociedade liberal burguesa foi paradigmática, mas, por outro lado, em diversos campos, inclusive na pedagogia, emergiram reflexões sobre as finalidades sociais da educação, a inserção da criança na sociedade, a questão da cidadania. Os projetos educacionais se tornavam nacionais e a expansão das escolas públicas foi notável, com ênfase na educação básica e elementar – diferentemente dos enfoques verificados até então nos níveis secundário e superior.
O pensamento de Jean-Jacques Rousseau fundamentou as proposições dos românticos do século XIX, principalmente na Alemanha, sobretudo nos aspectos que tangem o sentimento da natureza, a busca pela solidão e a defesa de que todos os homens nascem livres, sendo que a liberdade faz parte da natureza.
Na pedagogia, o período romântico produziu uma renovação teórica que ativou uma ideia de formação (o desenvolvimento espiritual por meio da cultura); vinculada a uma nova concepção de espírito humano (posto como centro do mundo, como presença ativa) e uma reafirmação da educação, da relação educativa, da escola e da família como momentos centrais da formação humana (CAMBI, op. cit., p.415).
5 CONCEPÇÕES PESTALOZZIANAS
Johann Henrich Pestalozzi foi um pensador que buscou, como poucos, a articulação entre as teorias e as práticas, acreditando com vigor no papel da educação pública, e que a renovação do ensino era fundamentalmente uma questão social.
Quando Rousseau apresentou seus postulados em educação, a Europa estava em transição - uma sociedade organizada nos moldes de um capitalismo pré-industrial, e suas
ideias foram concebidas naqueles limites. Um importante avanço e diferencial de Pestalozzi foi o esforço efetivo para a implantação de uma nova pedagogia, com suas intuições acerca da psicologia da criança e na didática - seguramente, postulados e experiências que deram um importante impulso para a educação do século XIX.
A premissa fundamental do pensamento pestalozziano é a existência de uma natureza, uma essência humana, independente da categoria social ou de circunstâncias externas. Na trilha do contratualismo de Rousseau, a ideia de uma condição do homem que almeja a realização da felicidade possível, permeada pela paz interior que todos anseiam. A educação verdadeira, acreditava ele, é a educação segundo a natureza, que conduz por sua essência a aspiração à perfeição, à realização de todas as faculdades.
Como apresentado, ao longo de sua vida insistiu na educação elementar, com um interesse especial no ensino das crianças pobres. Em “Carta sobre educação infantil” 5, Pestalozzi reitera, como bom rousseauniano, sua crença no ser humano e a pureza contida nas crianças:
Em minha última carta, expus minha sincera convicção de que, na criança, se dá uma disposição que, com a ajuda divina, pode capacitá-la a cumprir - e não com o objetivo de distinguir-se com isso entre as demais pessoas - o máximo mandamento de seu Criador, isto é: caminhar sob a luz da fé, com o coração pleno daquela caridade sobre a qual está escrito que ‘tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais acabará’ (I Coríntios, 13,7-8). A esta disposição, tal como se manifesta no primeiro estágio da vida humana, eu a tenho chamado de capacidade de amor e de fé (2003b, p.26).
Avesso ao ensino autoritário tradicional, acreditava que o estímulo era suficiente para o desenvolvimento espontâneo da criança - uma psicologia infantil ainda incipiente e permeada pelo Romantismo. Ainda nesse texto, enfatizou sua crença no papel da educação para a busca da felicidade:
Se passarmos a considerar o homem como ser individual, há que se afirmar que a educação deveria fazê-lo feliz. O sentimento de felicidade não nasce de circunstâncias externas; é um estado de alma caracterizado pela consciência de harmonia entre o mundo interior e o exterior. Impõe aos desejos, os limites que lhes correspondem, e assinala às faculdades do homem os objetivos mais elevados. Pois feliz o é aquele que é capaz de acomodar suas necessidades aos meios de que dispõe e de renunciar aos desejos pessoais e egoístas, sem perder por isso, sua alegria e sua paz [...]. (Id., p.131-2).
5Tradução nossa a partir da edição espanhola: “Cartas sobre la educación de los niños.” (2003c)
Em 1801, como mencionado, “Como Gertrudes ensina a seus filhos” (2003b) foi uma de suas principais obras na pedagogia, organizada em forma de cartas. Nesses escritos, focalizou o papel da mãe na vida da criança, sustentando que o amor a humanidade é aprendido com o aconchego materno, que deposita em seu coração os gérmens do amor por todo o ser humano. A rigor, no sistema pestalozziano, a mãe da família é o tipo e o modelo natural da educação, compreendido em seu verdadeiro sentido6:
A obediência e o amor, a gratidão e a confiança reunidas, fazem brotar na criança os primeiros gérmens da consciência. Ele começa a sentir, muito vagamente no princípio que, não é justo ter raiva contra sua mãe que o ama. Ele começa a sentir vagamente que sua mãe não é única no mundo e somente para ele. Ele desperta a primeira tênue sombra do vago sentimento de que o mundo não existe só para ele, e com esse sentimento nasce também outro: que ele mesmo não existe no mundo, só por si; é a primeira e vaga ideia do dever e de direito, que começa a germinar. Estas são as primeiras características fundamentais do desenvolvimento da personalidade. Eles surgem das relações naturais que existem entre a mãe e o filho que cria (op. cit., p.142).
Pestalozzi não idolatrava a priori uma ingenuidade infantil. Sua concepção de natureza humana operava numa dupla percepção, uma natureza animal e outra, ao mesmo tempo espiritual - uma natureza inferior e outra melhor. E o amor materno é a força mais poderosa para dominar esses sentimentos primitivos do homem.
Em “Cartas de Stans” reitera a importância da família - fundamento de toda a educação por ser o espaço do afeto e do trabalho comum:7
Minha convicção e meu objetivo eram um só. Na verdade, eu pretendia provar, com minha experiência, que as vantagens da educação familiar devem ser reproduzidas pela educação pública e que a segunda só tem valor para a humanidade se imitar a primeira. Aos meus olhos, ensino escolar que não abranja todo o Espírito, como exige a educação do homem, e que não seja construído sobre a totalidade viva das relações familiares, conduz
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6Tradução nossa a partir da obra em espanhol: «La obediencia y el amor, la gratitud y la confianza reunidas, hacen brotar en el niño los primeros gérmenes de la conciencia. Él comienza a sentir, muy vagamente al principio que, no es justo rabiar contra su madre que lo ama. Él comienza a sentir vagamente que su madre no está en el mundo única y solamente para él. En él se despierta la primera tenue sombra del vago sentimiento de que no existes todo el mundo para él, y con este sentimiento nace también este otro: que él mismo no existe en el mundo, únicamente para si; es la primera y vaga idea del deber y del derecho, que principia a germinar. Éstos son los primeros rasgos fundamentales del desarrollo de la personalidad. Ellos nacen de las relaciones naturales que se establecen entre la madre y su hijo que cría.»
7Tradução nossa a partir do francês: « En fait, je voulais prouverpar mon expérience, que les avantages de l'éducation familiale devrai têtre joué parl'éducation du publicet la seconden'a de valeur quepour l'humanitéà imiterle premier. A mes yeux, la scolarisation necouvrent pas la totalitéde l'Esprit, tel que requis parl'éducation de l'homme, et qui n'est pas construit sur la totalité vivante des relations familiales ne conduit qu'à une méthode artificielle de retrait de nos espèces. Chaque bonne éducation exige que l'œil moniteur maternelle, à l'intérieur de la maison, chaque jour, chaque heure, chaque changement dans l'état de l'âmede votre enfant, de le lire en toute sécurité dans vosyeux, votre bouche, sur son front ».
apenas a um método artificial de encolhimento de nossa espécie. Toda a boa educação exige que o olho materno acompanhe, dentro do lar, a cada dia, a cada hora, toda a mudança no estado de alma de seu filho, lendo-o com segurança nos seus olhos, na sua boca, na sua fronte (op. cit., p.18).
Portanto, Pestalozzi concebia a educação escolar como complemento da educação doméstica e a preparação para a educação para a vida.
Com uma pedagogia fundamentada no “espírito da benevolência e da firmeza”, buscava a elevação do homem a uma dignidade espiritual. Mas, firmeza em Pestalozzi não pode ser confundida com a educação repressiva dos métodos tradicionais de ensino que ele refutava.
Pestalozzi enfatizava as conexões entre a pedagogia e sociedade pela disciplina e pelo trabalho, bem como a formação do homem, vista como exercício de liberdade, e da participação na vida coletiva, econômica e social.
Esse enfoque na liberdade, verificado posteriormente nas formulações políticas e pedagógicas de Fichte (que se tornou reitor da Universidade de Berlim - a primeira instituição universitária dita contemporânea) e em Fröebel, buscou caracterizar a função sociopolítica e ideológica da educação, cujas ações devem emancipar e integrar o sujeito, responsável na sociedade industrial e liberal a caminho. Na Alemanha, a reformulação da escola elementar (cujas tradições remontavam a Lutero) foi efetuada por influências de Pestalozzi.
Pestalozzi valorizou a religião como princípio universal, comum a todos os ramos da educação, posto que seus atos reproduzem o pensamento e a presença da divindade. Mas é importante assinalar que, tanto Pestalozzi quanto Rousseau, em que pese a origem em um país protestante - a Suíça - palco de importantes reformas religiosas, adotavam a posição filosófica do “deísmo” - postura que admite um Deus criador, sem negar, no entanto, a realidade do mundo regido pelas leis naturais, captadas pela razão científica. Seus postulados para a educação são de um tipo de religiosidade íntima, não confessional e não submetida a dogmas e seitas.
A educação pestalozziana é primordialmente moral e lógica - princípio vital de seu sistema. O indivíduo é um todo, cujas partes devem ser cultivadas e a unidade espírito- coração-mão é análoga à tríplice atividade conhecer-querer-agir, por meio da qual ocorre o aprimoramento da inteligência, da moral e da técnica (ARANHA, 2006, p.211). A educação deve ser essencialmente prática, focada na existência e empregada em todas as circunstâncias da vida.
Na didática, Pestalozzi desenvolveu o método intuitivo, em que a aprendizagem é um produto da observação e da percepção, ou seja, é a visão mental ou a faculdade de ver e
discernir o que não pode perceber por meio dos sentidos. A criança parte da observação de um objeto - pelos sentidos, alimenta a intuição (ou a mente) de conteúdos, permitindo a formulação de hipóteses, ou seja, a produção do conhecimento. O método é denominado como "intuitivo” diante da premissa de que a intuição é uma parte ativa da mente, que age diante das sensações.
Em oposição ao ensino livresco, o método intuitivo parte do pressuposto de que toda educação começa pelos sentidos. Em “Livros de Educação Elementar” (2003d), Pestalozzi escreve o prefácio dirigido às mães, recomendando a atenção especial aos sentidos: 8
Eu poderia parar por aqui, mas eu ainda imploro aos meus leitores a considerar algumas advertências relativas aos sentidos, especialmente aquelas relacionadas à visão, audição e tato, bem como aqueles relativos à linguagem, para tomá-los como parte do prefácio e, como propósito de facilitar a implementação dos mesmos. [...] (2003, p.255).
O livro é composto de três textos, “Livro das Mães”, “ABC da Intuição” e “Doutrina da visão das relações dos números”. Ao explanar sobre a melhor forma do ensino da geometria, assinalou9:
Primeiro, que é absolutamente necessário fazer com que as crianças delineiem, até fazê-lo com perfeição. [...] Em segundo lugar, o desenho das crianças deve reproduzir precisamente as figuras indicadas pelo professor. [...] Em terceiro lugar, que deve pedir-lhes que façam combinações, para alimentar sua imaginação. (id., p.255).
A intuição é o princípio, a base e o meio da instrução. A educação, teorizava, deve empregar todos os meios que favoreçam a intuição, oferecendo ao aluno uma visão clara e distinta do que se ensina. Nessa lógica, o foco fundamental do ensino não é a simples transmissão do conhecimento, mas o desenvolvimento da inteligência do aluno. A educação deve ser gradual e progressiva, e o ensino começa pelo mais simples, avançando, de acordo com o desenvolvimento da criança, para o mais completo.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
8Adaptação a partir do título em español: “Libros de educación Elemental (Prólogos). Tradução da passagem: “Yo podría detenerme aquí, pero quiero rogar aún a mis lectores que consideren algunas advertencias relativas a los sentidos, especialmente las que se refieren a la vista, al oído y al tacto, así como las que se refieren al lenguaje, para que las tengan como parte de este prefacio y como a propósito para facilitar la aplicación de ellas”.
9Idem: “Primero, que es absolutamente necesario hacer que los niños delineen, hasta hacerlo a la perfeição. [...] Segundo, que el dibujo de los niños se ha de reducir precisamente a las figuras indicadas por el maestro. [...]. Tercero, que se les debe pedir que hagan luego combinaciones, para avivar su fantasía.”
No “Canto do cisne”, último desabafo do militante incansável pela educação popular, Pestalozzi diz:
Meu caráter juvenil era, como já disse, sentimental, poderosamente afetado pela impressão dos acontecimentos de cada instante; e isto me levava a trabalhar com precipitação e irreflexão. Eu vim ao mundo unicamente desde as limitações do lugar de minha mãe e as limitações não menores da vida em minha escola; a vida real das pessoas eram, para mim, quase tão estranhas como se eu não vivesse no mundo em que vivia. Acreditava que todas as pessoas eram tão bondosas e confiáveis ao menos como eu mesmo; como o qual, naturalmente, desde meus ternos anos fui a vítima de todos aqueles que quiseram me fazer objeto de suas artimanhas (2003, p.229).
Em vida, Pestalozzi sofreu muitas vezes com a incompreensão e a oposição ferrenha de críticos. A ênfase e o reconhecimento da importância das crianças muitas vezes foram confundidos pelos conservadores com a “valorização das classes inferiores” (MANACORDA, 2010, p.318-9).
Quando faleceu, seus restos mortais foram levados ao cemitério de Birr e carregados pelos ombros de seus discípulos. Em 1846 o governo de Argóvia construiu um monumento funerário com a inscrição10:
AO PAI PESTALOZZI
Aqui repousa Henrique Pestalozzi.
Nascido em Zurique a 17 de janeiro de 1746. Morto em Brugg, a 17 de fevereiro de 1827. Salvador dos pobres em Neuhof;
Pregador do povo em Leonardo e Gertrudes; Pai dos órfãos em Stans;
Em Bugdorfe em Münchenbuschee. Fundador da nova escola popular; Preceptor da humanidade em Yverdun. Homem, cristão, cidadão.
Tudo para os outros, para si nada. Bendito seja seu nome.
A Argovia reconhecida MDCCCXLVI
Entre o final do século XIX e o início do XX, o movimento escolanovista, também chamado como “Escola Ativa” ou “Escola Progressista”, teve grande repercussão na renovação do ensino na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil, introduzido aqui por Rui Barbosa (1849/1923). As transformações do capitalismo, advindas com o avanço urbano e industrial, exigiam uma preparação mais sofisticada, e a educação foi percebida como o elemento central para esse desenvolvimento.
10 Tradução nossa a partir da edição em espanhol: Pestalozzi, 2003b, p.26.
Imbuídos das noções de igualdade entre os homens e do ideal do acesso universal ao ensino, os intelectuais militaram por um sistema educacional público, livre e democrático - um meio efetivo no combate às desigualdades sociais.
O suíço Johann Heinrich Pestalozzi foi um dos pensadores que mais inspiraram essa renovação do ensino, bem como seu discípulo Fröebel, o filósofo estadunidense John Dewey, o psicólogo genebrino Edouard Claparèd, dentre outros.
REFERÊNCIAS
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da educação. 3.ed. São Paulo: Moderna, 2006.
CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Editora Unesp, 1999.
CHÂTEAU, Jean. Os grandes pedagogistas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.
CONDORCET, Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, Marquis de. Cinco memórias sobre a instrução pública. São Paulo: Editora da Unesp, 2008.
FICHTE, Johann G. Por uma universidade orgânica: plano dedutivo de uma instituição de ensino superior a ser edificada em Berlim, que esteja estreitamente associada a uma Academia de Ciências. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.
INCONTRI, Dora. Pestalozzi: Educação e ética. São Paulo: Editora Scipione, 1997.
MANACORDA, Mário A. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 13.ed. São Paulo: Cortez, 2010.
PESTALOZZI, Johann Heinrich. Mes recherches sur la marche de la nature dans l’évolution du genre humain. Lausanne: Editions Payot, 1994.
. Cartas sobre educación infantil. Madrid: Editorial Tecnos, 1988.
. El canto del cisne. Barcelona: Laertes, S.A. de Ediciones, 2003a.
. Como Enseña Gertrudis a sus hijos. México, DF: Editorial Porrua, 2003b.
. Cartas sobre la educación de los niños. México, DF: Editorial Porrua, 2003c.
. Libros de educación elemental. Prólogos. México, DF: Editorial Porrua, 2003d
. Leonard and Gertrude. Boston: J. S. Cushing& Co., 1891.
. Lettre de Stans. Genève: Editions Zoé, 1996.
. Sobre legislación e infanticidio (1780-1783). Barcelona: Herder, 2002.
. La velada de un solitario y otros escritos. Barcelona: Herder, 2001.
ROUSSEAU Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2003.
. Emílio ou Da Educação. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
. Júlia ou A Nova Heloísa. Tradução: Fúlvia Moretto. Campinas: Hucitec, 1994. SOËTARD, Michel. Pestalozzi. Brasília: Ministério da Educação, 2010.
HISTORY of Switzerland. Disponível em: <http://history-switzerland.geschichte- schweiz.ch/>. Acesso em: 20 mar.2012.
SOBRE O AUTOR
Anderson Claytom Ferreira Brettas é Doutor em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia com pós-doutorado em História da América Latina na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na Universidad del Magdalena, na Colômbia. Mestre em Educação, graduado em Ciências Sociais e em História, é professor efetivo do Instituto Federal do Triângulo Mineiro, campus Uberaba.
Recebido em 03 de setembro de 2018 Aprovado em 30 de novembro de 20
Fonte:http://www.revistasdigitais.uniube.br/index.php/rpd/article/view/1216/1415
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