O SOCIÓLOGO FRANCÊS ALAIN TOURAINE: "CHOQUE ECONÔMICO DO CORONAVÍRUS PODE PRODUZIR REAÇÕES FASCISTAS"
O sociólogo francês Alain Touraine em Paris em 2015.STEPHANE GRANGIER/CORBIS/GETTY IMAGES / CORBIS VIA GETTY IMAGES
Alain Touraine: “Choque econômico do coronavírus pode produzir reações fascistas”
O sociólogo francês é um dos últimos sobreviventes de uma geração que marcou o pensamento ocidental. Ele diz que agora sente um grande vazio
Alain Touraine (Hermanville-sur-Mer, 1925) é um dos últimos sobreviventes de uma geração brilhante que marcou as ciências sociais e o pensamento ocidental desde meados do século XX até o início do XXI. Como sociólogo, seu campo de estudos abrangeu desde as fábricas que no pós-guerra elevaram o país à sociedade pós-industrial até os movimentos sociais e a crise da modernidade. Com suas intervenções no debate público —na França, mas também em outros países europeus, como a Espanha, e na América Latina—, Touraine se tornou uma referência do que em seu país chamam de segunda esquerda —de caráter social-democrata e claramente antitotalitária. O sociólogo conversou com o Ideias por telefone de sua quarentena em Paris
RESPOSTA. Tecnicamente, quem enfrenta a guerra é um exército. Que invade o território do país B. São necessários pelo menos dois agentes e ocorre entre humanos. Aqui, em vez disso, o que vemos é o humano contra o não humano. Não critico o uso da palavra guerra, mas seria uma guerra sem combatentes. Não há estrategista: o vírus não é um chefe de Governo. E, do lado humano, acho que vivemos em um mundo sem atores.
P. Sem atores?
R. Nunca tinha visto um presidente dos Estados Unidos tão estranho como Donald Trump, tão pouco presidencial, um personagem tão fora das normas e fora de seu papel. E não é por acaso: os Estados Unidos abandonaram o papel de líder mundial. Hoje não já há nada. E na Europa, se você olhar para os países mais poderosos, ninguém responde. Não há ninguém no topo.
P. E abaixo?
R. Não existe um movimento populista, o que há é um colapso do que, na sociedade industrial, criava um sentido: o movimento operário. Em outras palavras, hoje não há atores sociais nem políticos, nem mundiais nem nacionais nem de classe. Então o que acontece é o oposto de uma guerra, com uma máquina biológica de um lado e, do outro, pessoas e grupos sem ideias, sem direção, sem programa, sem estratégia, sem linguagem. É o silêncio.
P. Recorda-se de algum momento semelhante em sua vida?
R. Talvez o mesmo sentimento existisse durante a crise de 1929, eu nasci um pouco antes: tudo desaparecia e não havia ninguém, nem à esquerda nem nos Governos. Mas é verdade que o vazio foi rapidamente preenchido pelo senhor Hitler. O que mais me impressiona agora, como sociólogo e historiador do presente, é que fazia muito tempo que eu não sentia esse vazio. Há uma ausência de atores, de sentido, de ideias, até mesmo de interesse: a única preferência do vírus é pelos velhos. Também não há remédio nem vacina. Não temos armas, estamos com as mãos nuas, estamos encerrados sozinhos e isolados, abandonados. Não se deve estar em contato e é preciso ficar trancado em casa. Isto não é a guerra!
P. O senhor tinha 14 anos em 1940, no início da verdadeira guerra, a Segunda Guerra Mundial. Isto o faz recordar daquele momento?
R. Não. Naquela época, para um garoto francês da minha idade, não havia nada mais banal do que uma guerra franco-alemã. Aquilo já fora jogado várias vezes. Mas, depois, a ocupação, sim, marcou toda a minha juventude. Agora é outra coisa: estamos no vazio, reduzidos ao nada. Não falamos, não devemos nos movimentar nem compreender.
P. Como chegamos aqui?
R. Vivemos dois bons séculos na sociedade industrial, em um mundo dominado pelo Ocidente por cerca de 500 anos. Hoje acreditamos, e foi o caso nos últimos 50 anos, que vivíamos em um mundo americano. Agora talvez viveremos em um mundo chinês, mas também não tenho certeza. Os Estados Unidos estão afundando e a China está em uma situação contraditória, que não pode durar eternamente: quer praticar o totalitarismo maoísta para gerenciar o sistema capitalista mundial. Nós nos encontramos em lugar nenhum, em uma transição brutal que não foi preparada nem planejada.
P. O senhor fala do momento de hoje, em confinamento total, ou do nosso tempo em geral?
R. Ambos. Mas eu gostaria de dar o ponto de vista de alguém trancado. Hoje mesmo não estou em lugar nenhum, pois não tenho o direito de sair à rua.
P. Esta situação o deixa angustiado?
R. Não, porque minha vida consiste em estar em casa trabalhando. Eu me sinto, de alguma forma, protegido nas mesmas condições de todos os dias.
P. Onde está a Europa?
R. O senhor ouviu muitas mensagens europeias nos últimos dias? Eu, não. Sou muito europeísta, provavelmente demais. A saída do Reino Unido não é pouca coisa. A ascensão de iliberais como Matteo Salvini na Itália, também não. Esta epidemia ocorre em um período em que não sabemos nem como nem por quê. É muito cedo para saber o que fazer financeiramente, e politicamente não nos pedem outra coisa a não ser ficar trancados em casa. Estamos no não sentido, e acho que muita gente ficará louca pela ausência de sentido.
P. Haverá um retorno do nacionalismo e do populismo?
R. Mas isso já estava aqui. Existem agora duas decisões fundamentais para a Europa. Primeiro, a libertação por meio das mulheres. Ou seja, a derrubada da razão no centro da personalidade e a recomposição dos afetos em torno da razão e da comunicação, uma sociedade do care [em inglês, cuidados]. E segundo, a recepção dos imigrantes, que considero um problema de peso. Nossos países europeus se definem hoje por sua atitude em relação aos imigrantes.
P. O vírus não muda tudo? As consequências econômicas, novos costumes sociais com mais distância, outras prioridades...
R. Acho que não. Haverá outras catástrofes. Eu ficaria muito surpreso se nos próximos dez anos não houver catástrofes ecológicas importantes, e os últimos dez anos foram perdidos. Atenção, as epidemias não são tudo. E acho que estamos entrando em um novo tipo de sociedade: uma sociedade de serviços, como diziam os economistas, mas de serviços entre humanos. Esta crise vai elevar a categoria dos cuidadores: não podem continuar sendo mal pagos. Ao mesmo tempo, com essas crises há possibilidades de que um choque econômico produza reações que chamo de tipo fascista. Mas não gostaria de falar muito sobre o futuro, prefiro me concentrar no presente.
P. Hoje o vírus nos governa.
R. Não o vírus, e sim nossa impotência para combatê-lo, mas acabará sendo encontrada uma vacina.
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