LIVRO CONTA A ORIGEM DO ÍNDICE, E O QUE OS SERMÕES DO SÉCULO 13 TÊM A VER COM O GOOGLE

  Uso dos índices remissivos influencia a compreensão de livros e documentos


Livro conta a origem do índice, e o que os sermões do século 13 têm a ver com o Google

Estudioso britânico mostra que humanidade sempre buscou formas de indexar os livros, mas que nossa paixão pela pesquisa digital talvez esteja colocando em perigo a arte do índice

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Ubiratan Brasil Especial para O GLOBO

26/02/2024 03h31  Atualizado há 4 dias

Professor de inglês na University College London, Dennis Duncan terminou em 2019 sua tese de doutorado sobre a OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle, traduzível como oficina de literatura potencial), que reunia nomes como Marcel Duchamp ou Raymond Queneau, entre outros artistas que se destacaram na França dos anos 1960. Um detalhe chamou a atenção de Duncan ao estudar a famosa oficina parisiense: seus autores frequentemente incluíam índices remissivos em suas ficções. Era algo incomum, pois romances não costumam ter índices assim. No entanto, foi o que ele observou em obras que marcaram a OuLiPo, como “A vida modo de usar”, de Georges Perec, e “Palomar”, de Italo Calvino, para citar alguns membros da oficina.


Decidido a escrever um artigo sobre a origem dos índices, Duncan fez várias pesquisas, chegando até a manuscritos medievais. O resultado está em “Índice, uma história do”, livro de 2021 lançado agora pela editora Fósforo, com tradução de Flávia Costa Neves Machado.

Trata-se de um curioso relato que mostra, por exemplo, a relação entre Santo Agostinho e as hashtags, e também como os sermões de padres do século XIII se relacionam com pesquisas no Google em 2024.

Um grande mapa

Estranho, mas tem a ver. Um índice, explica Duncan, é simplesmente um mapa: um conjunto de placas de sinalização que apontam onde encontrar algo específico no vasto terreno do texto.

Segundo o estudioso, os índices impressos mais antigos são encontrados na obra “De arte praedicandi” (“Sobre a arte de pregar”), de Agostinho, publicadas na década de 1460. Enquanto o teólogo pregava os sermões, suas palavras eram registradas por estenógrafos, e a obra traz indexações para facilitar a leitura que nada ficam a dever às atuais hashtags e sua forma de direcionar o usuário para uma página listando publicações afins.

Duncan relaciona também a forma como os sermões de religiosos do século XIII se relacionam com pesquisas no Google em 2024. Em suas pesquisas, ele descobriu que o índice foi criado duas vezes — ambas por volta do ano 1230 —, uma em Paris e outra em Oxford.

Na capital francesa, um religioso chamado Hugo de St. Cher, responsável por uma abadia, convenceu os frades a trabalhar em um grande projeto: desmontar a Bíblia em suas palavras individuais. Ao todo, foram dez mil vocábulos diferentes, vários aparecendo centenas de vezes (como “Deus” e “pecado”), tudo organizado em ordem alfabética, além de trazer uma referência em qual página da Bíblia cada palavra aparecia.

Já em Oxford o destaque era o bispo Robert Grosseteste (1175-1253), político e filósofo, considerado por Duncan como o leitor mais voraz de sua época: desde a Bíblia até a filosofia do mundo antigo, nada lhe escapava.

Para que a amplitude da leitura fosse facilitada, ele fez uma lista com todos os conceitos que lhe interessavam — 440 tópicos diferentes. Para cada um, desenhou um pequeno símbolo na margem dos livros (algo como três pontos para a Santíssima Trindade ou uma flor para a “imaginação”), o que faz a leitura parecer um fluxo de emojis ao olhar atual.

Finalmente, Grosseteste dedicou uma página para cada um desses tópicos, criando um índice de todas as ideias e onde encontrá-las.

“Era basicamente um Google do início dos anos 1200”, compara Duncan.

‘Emburrecimento’

O pesquisador britânico também destaca a invenção da ordem alfabética e a importância do número da página grafado nos livros impressos, recurso que tem perdido sua eficiência com o uso generalizado de documentos digitalizados.

Duncan trata ainda de uma antiga discussão: a possibilidade de que a lista de remissões levasse ao emburrecimento porque, em vez de lerem o livro inteiro, estudantes preguiçosos seriam tentados a folhear o índice remissivo e rapidamente descobrir o que interessa (ou não) a eles.

Duncan não descarta essa possibilidade, porque vê com preocupação a forma como o Google muda a forma como lemos, agora que é possível pesquisar tudo. Ou quase tudo.

De fato, o mercado do mundo digital é indexado e oferecido até nós pelos motores de busca. Ainda assim, parcialmente. Mas, embora essas ferramentas sejam índices gigantescos, elas não apresentam tudo o que está na internet.

“A história do índice é na verdade uma história sobre o tempo e o conhecimento e a relação entre os dois”, escreve Duncan, ciente da importância do seu tema.

Assim, no final do livro, o pesquisador alerta que nossa paixão pela pesquisa digital talvez esteja colocando em perigo a arte do índice, que tradicionalmente traz a marca do ser humano que o compila.

Ubiratan Brasil é jornalista

‘Índice, uma história do’

Autor: Dennis Duncan. Tradutor: Flávia Costa Neves Machado. Editora: Fósforo. Páginas: 328. Preço: R$ 99,90. Cotação: ótimo.


Fonte:https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2024/02/26/livro-conta-a-origem-do-indice-e-o-que-os-sermoes-do-seculo-13-tem-a-ver-com-o-google.ghtml


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